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domingo, 6 de julho de 2008

EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU...


Conforme o acordado (por mim), permitido (por ele) a partir da leitura do texto abaixo, aqui vai, na íntegra, um pensamento a ser compartilhado. Noves fora Djavan, a verdade do autor é devidamente reforçada nesta casa. Daí a vontade, mais que isso, a necessidade de publicar este tratado.

"John Coltrane também não vem

Após a resenha em forma de denúncia oferecida por nosso amigo Grijó, fiquei perplexo diante de outra atrocidade cometida contra o jazz: John Coltrane também não vem à Vitória! A eliminação gradativa da expressão individual faz parte de um amplo projeto de imbecilização das massas, da padronização das ofertas, das opções e das escolhas culturais, tornando, assim, o mercado consumidor de cultura previsível, acrítico e indefeso diante dos imensos monopólios econômicos que enlatam cultura. O fim do Estado, com a degradação crescente e acelerada das escolas, hospitais, praças, presídios, bibliotecas, museus e principalmente dos banheiros públicos, reflete bem a imagem de abandono em que vivemos. Somente alguns poucos espaços privados, reservados a um número decresente de privilegiados, funcionam satisfatoriamente. E não estamos nos referindo apenas ao Brasil ou à África: quadro idêntico vem se modelando também na Europa e nos EUA. Cultura diversificada, oportunidade de expressão, liberdade de escolha, direitos assegurados e outros bens que nossa civilização demorou séculos para estabelecer, estão sendo lentamente destinados a alguns poucos eleitos, de acordo com sua conta bancária e não com sua capacidade de ouvir jazz.

Nesse quadro neo-medieval nada mais politicamente correto do que abaixar a cabeça, submeter-se à força do capital, aplaudir o rei nu e reeleger indivíduos que vendem o sonho da igualdade a uma população desvalida cultural, nutricional e economicamente. O aniquilamento do jazz, nesse cenário, é fenômeno mais do que natural e previsível, ainda mais quando reconhecemos que a expressão individual deve ceder espaço ao padrão cultural da maioria que, se analisado cuidadosamente, não constitui padrão algum, uma vez que para cada opinião individual existe uma arte, tão válida quanto qualquer outra. A questão não é essa, a questão é o aniquilamento de certas formas de arte pelo simples fato de serem mais elaboradas, mais exigentes, mais caras ou menos compreensíveis num primeiro contato.

Arte e democracia, sabemos bem, sempre tiveram uma convivência difícil. Ainda assim, mal ou bem, sempre conviveram e frutificaram. Já arte e ditadura não são compatíveis, não conseguem conviver e frutificar. Ou vence a arte, ou vence a ditadura. A arte tem dessas manias, não tolera amarras, não tolera modelos, não tolera falta de sensibilidade e emoção. No caso específico da ditadura dos imbecis, como a existente hoje no Brasil, a única arte capaz de sobreviver é aquela alimentada por clamores populares ingênuos, desinformados e pouco articulados intelectualmente. Ora, quem pode, em sã consciência, aceitar satisfeito a falência das orquestras sinfônicas Européias e aplaudir a proliferação de bandos de tocadores de tambor e de duplas caipiras plantando tomate? Bem, é verdade que o bumbo, o berimbau e a viola caipira possuem seu valor cultural incontestável, é certo. E podemos até aceitar que surja, em tese, alguns concertos para agogô e orquestra na terra do pau-brasil. Mas lamento ver que, nesse processo, o piano e o órgão, as sinfônicas e as filarmônicas, os trompetes e os saxofones estejam sendo aniquilados em nome do acesso à cultura.

E não me venham dizer que não existe cultura melhor que a outra. Essa afirmação só produz efeito ou convencimento naquele indivíduo desprovido de oportunidades, limitado a um quadro cultural pobre, míope e pouco diversificado. Quem ouviu Charlie Parker ao vivo, como Jorge Guinle, sabe do que estamos falando. Quem ouviu Pixinguinha ao vivo, como meu pai, também sabe. Eu ouvi Clementina de Jesus e sei do que estou falando. As aberrações culturais de hoje, como Carlinhos Brown, Ivete Sangalo, Tiririca, Djavan, Olodum, Supla, Xitãozinho e Xororó são apenas alguns dos muitos exemplos de padronização cultural baseada no mínimo, no menor, no pobre, no pouco. Artistas desse calibre são facilmente manipuláveis por organismos industriais como Rede Globo ou outras fábricas de papel higiênico. Agora eu pergunto: como domar um Sonny Rollins? Como domar um Thelonious Monk? Como domar um Egberto Gismonti? Como domar um Vitor Assis Brasil? Que o poetinha venha em nosso socorro. Ou seja, a melhor arte existe e é aquela que lhe dá prazer, que lhe causa sensações, emoções. Que produz sorriso e lágrimas.

Claro que não defendo a elitização da arte ou a eliminação de determinadas formas de arte, não mesmo. Que venham os tambores, mas que não exterminem os pianos. A elitização da arte só ocorre em virtude do miserável estado em que a maioria da população é obrigada a sobreviver, acordando de madrugada, submetendo-se a horas e horas de péssimo transporte, trabalhando muitas vezes mais de uma jornada para, ao final, retornar para seu vale-pardieiro. Obviamente essa maioria não terá acesso, quando tem, a outra arte que não seja a determinada pelas organizações globais e pelo ministro da cultura. A grande arte requer ócio, tempo, espreguiçamentos lentos, tanto em sua feitura quanto em sua apreciação.

Nesse quadro veloz do trem bala e do hamburguer com sabor de plástico, o jazz e a música clássica européia estão morrendo lentamente, acusados injustamente de elitistas quando, na verdade, expressam em seus versos séculos de evolução, estudos, experiências, alegrias e tristezas nascidos de homens como nós, saídos de ventres. A eliminação do jazz, nesse contexto amplo, é ainda mais grave, na exata medida em que enterra a mais importante expressão musical do século XX, uma expressão nascida do grito, da dor e da revolta negra ao modelo de liberdade branca imposto aos escravos africanos que foram levados à força para os EUA. A repercussão do jazz no cinema, na fotografia, nas artes plásticas, nas idéias e nos comportamentos se fez sentir primeiramente na Europa, espalhando-se depois ao redor do mundo, criando condições para que a expressão individual tivesse o seu espaço, alterando, assim, o quadro monótono da arte vendida em compotas idênticas, com sabores idênticos. A morte do jazz, antes de representar tão somente a morte de um estilo musical, remete à morte da possibilidade de cada um ter seu canto, sua voz. O desaparecimento do jazz é também o desaparecimento da felicidade, da alteridade, do inusitado e do encantamento. Perdida a hipótese da surpresa, não há mesmo espaço para Sonny Rollins. Nem para John Coltrane. Nós sabemos que aquele arrepio, só com jazz ou beijo na nuca.

Confesso: preciso das pessoas malucas que ouvem e fazem jazz. Olhe ao seu redor e veja só onde as pessoas normais nos levaram.”

Escrito por John Lester no blog Jazzseen (02/07/2008)