
Fossa Perfumada ainda é pura ficção. No mais, todas as histórias que conto e ainda contarei aqui, no balcão deste sônico butiquim, são reais. Veja, leitor, que trágica esta, não fosse ela tão patética:
Um amigo me conta que andou numa fase make exagerada na bebida. Motivos não faltavam. Um belo dia, quando menos esperava (e o que seria das surpresas se por elas esperássemos?), a esposa, sempre tão correta, incapaz de surpreende-lo sequer com a conta do supermercado, propôs (ao maridão) convidar a amiga de infância (famosa jogadora da seleção) do tempo do basquete no Flamengo, para que os 3... digamos, dormitassem juntos. E falou desse jeito blasé e de chofre enquanto descalçava os chinelos para ir se deitar. Bem - disse-me o amigo - uma coisa é a fantasia, outra a ducha fria da rebeldia...
Ele estava certo. O termo rebeldia não coube ali apenas para fechar uma rima ruim. Me explique, leitor, que outro motivo senão a modorra sexual faria a sua fiel esposinha, até ontem tão recatada, de repente propor trazer para o sacrossanto quarto do casal algum tipo de orgia com uma magic paula qualquer? Ainda se a outra jogasse vôlei e fosse, simplesmente, Leila... - perdão, aqui fui eu que divaguei cá com os meus neurônios já contaminados por idéia tão excitantemente pecaminosa.
Outro bom motivo, para citar duas das questões que atormentavam o amigo, era a velha crise do ser humano moderno nesta (palavras dele): desumana selva do capital liberal. Ele, artista plástico, um talento incompreendido! Ela, simplesmente, a prática. Dessas que cobram com duplicatas na mão, resultados realistas ao fim de todo mês. E enquanto, na mesma pauta, as discussões ganhavam tons de teledramaturgia do SBT, as contas, sem ter para onde ir, superlotavam a caixa do correio do lado de lá do muro - na época, moravam de favor num imóvel da sogra, sublocado, em Pedra de Guaratiba (atenção, locações, nomes e atividades profissionais são todos ficção!).
Precisa 3º motivo para beber? Assim mesmo forneço-o! Segundo o Ênio cansou de frisar, tanto pra mim quanto antes a si próprio, ele era um sujeito moderno, oras! A proposta da mulher + outra mulher não o abalou tanto assim. Porém, coincidentemente, daquele dia em diante, aquilo da mulher, a amiga e ele, ele, a amiga e a mulher... Os três na cama rolando pelo chão, até mesmo no chuveiro, sem saber ao certo quem ensaboava o quê de qual, mexeu com o imaginário (e otras cossitas que dão rima) do cara. A questão afinal, merecia uma reflexão mais acurada. E, sabe como é, né? – disse-me entre um gole de Kronenbier e outro - cidade pequena, entretenimento masculino mais barato (pra modo de meditar) melhor que um bom butiquim, não há!
E o amigo não fugiu à regra dos temperamentais da cidade. Fraco para a bebida, chegava em casa quase sempre agastado e, não raro, a mulher era obrigada a limpar, de preferência no banheiro, mas sempre em volta da privada, a sujeirada dos refluxos da junkie food que se consome nos bares... Num belo dia (e o belo aqui é pura força de expressão), Ênio adentrou o lar com uma sonambulância danada e no piloto automático, foi direto se atirar na cama. Quando a natureza (dele) chamou, o ébrio não teve tempo nem de virar a cara pro lado certo do chão. Vomitou os prováveis torresminhos, empurrados pelo caldin de mocotó e a cervejada, lubrificada pelo Cointreau (outra de suas excentricidades), ali mesmo na cama entre o casal. Pior! Mal sabia ele que justo naquela noite, o próprio filho dele e daquela puta mulher, ocupava o espaço. Não fê-lo, propriamente, aquilo por querê-lo, claro, mas depois de generalizado o melê, virou-se, agora sim, pro lado certo que dava pro carpete e continuou caindo nos braços do morfeu. Ora, o que o leitor, se bêbado assim estivesse, escolheria? Os dejetos no colchão ou a assepsia do tapetão? Bendito piloto automático que não cochila nem quando se dorme. – pensei. Sou um bom ouvinte nessas horas...
Dia seguinte, evidentemente, a tromba da mulher atravessava o salão da casa, ia até o muro lá no quintal e, não fosse a imagem uma figura de linguagem - de tão comprido -, o membro domado até seria capaz de buscar as contas já às traças acumuladas na caixa do correio. Já o Ênio, um ingênuo profissional, espichou-se no sofá e nem atinou para o motivo do gelo. Aliás, gelo ele botou na coca-cola pra ver se aplacava aquela maldita ressaca. Depois do almoço, quando marido e mulher ficaram a sós, antes da amélia ir pro tanque das louças – claro que tinha o das roupas -, a esposa pôs tudo em pratos limpos. E as últimas palavras dela foram taxativas. (...) Olha Ênio, pra mim chega! Só vou te dar uma última chance: decida-se de uma vez por todas: ou eu ou o bar!
Aos prantos a mulher se trancou no quarto. Ênio, sem dizer palavra, saiu para caminhar e pensar. Na rua, percebeu o quanto vinha sendo omisso, mais que isso, um insosso com a família e como pai!... Vomitei no meu próprio filho... A que ponto cheguei eu, meu Senhor!... Dá-me forças pra parar com este vício maldito... – suplicou uma provável futura ovelha da Igreja Universal. A bem da verdade, Ênio estava mais pra pai de santo. Era sexta-feira dia em que costuma vestir branco.
E lá se foi o gênio do Ênio, easy rider, pelas vielas estreitas de Pedra - quem sabe a procura do Templo perdido já que tanto aqui como lá eles estão por toda parte. Só parou de pensar e chorar quando se viu sentado em local supostamente estranho, rodeado de mesas com pessoas igualmente estranhas, diante de 5 garrafas de cerveja vazias e uma dose de Cointreau, recém entornada. Levantou-se às pressas, foi até o banheiro, lavou bem a serragem da cara, pediu ao do balcão que acrescentasse à conta 5 Bubaloo de hortelã e seguiu aos trancos e barrancos para casa. Por falar em barranco, chovia fino naquela noite e na emoção do momento, Ênio já havia catado alguns cavacos no caminho. Porra, gênio! Roupa branca? Não leve a mal não, mas até em trajes tu tá todo incorreto! – eu de novo, agora indignado, em protesto verbal.
Enfim, na porta, enquanto exercitava a clássica peleja entre a chave e a fechadura, viu-se, de repente, dentro de casa abraçado à mulher quando esta, com raiva e energia redobradas, obrigou Isaac Newton comprovar a Lei. Emocionado, com a voz embargada e aquele bafo de goma de manguaça que a esposa bem o reconhecia, Ênio, finalmente estava pronto a responder o ultimato “ou eu ou o bar” deixado em aberto horas atrás. É você, amor! Esquece o bar. Por Deus, eu juro que é você!!!
É claro que o leitor é inteligente e este mero cronista da vida privada (dos outros), não é de julgar a índole das pessoas, mas não poderia deixar de frisar que o amigo Ênio teve a pecha de ir pensar, a sério, entre a mulher, casamento, filhos, cachorro, papagaio e/ou o bar, na mesa de um maldito butiquim!
Enfim, na nebulosa manhã do "the day after", mais precisamente, no 1º de abril de um ano qualquer – do dia do mês ele lembra por questões óbvias - após noite pessimamente dormida - na rede pelo lado de fora - e a não menos incômoda viagem rumo ao Rio de Janeiro, no último bem que lhe restara, uma Belina do ano (82), sem mulher, que poderiam até ser duas, sem família e encafifado com que nome teria o correspondente feminino para Ricardão, Ênio voltava à casa de mamãe.
Assim surgiu-me a lumino$a idéia do Fossa - o Perfumada é pra já ficar subentendido que nem toda fossa cheira mal. Quem sabe a clientela assumida tope o desafio, ao colocarmos mesinhas na calçada, de se deixar filmar curtindo sua fossa a céu aberto? Sim porque, como o nome indica, o bar temático nada mais é do que um espaço lúdico, diria mais, bucólico, onde os românticos (em geral, do sexo masculino), cultuariam uma trilha musical de gente como Cartola, Nelson Cavaquinho... o “Adeus” do Lobo Edu... E enquanto enchemos a lata, trocaríamos experiências existenciais sobre a dura convivência com este estranhíssimo ser incompreensível, que é a mulher - digo, a ex, né? Porque a atual do próximo, nós, boêmios solitários, seguimos admirando.
Esta história com h é uma homenagem ao ídolo máximo de todos os boêmios, o letrista, poeta, cronista e demais etcéteras mis, Aldir Blanc.
Autor/personagem, Ênio, o gênio.
Ghost writer: Sergio, o sônico imparcial.
TRILHA INCIDENTAL
1) SARAH VAUGHAN - If You Went Away
2) TOM JOBIM - Modinha
3) KING CRIMSON - The Letters
4) CHET BAKER - My Funny Valentine
5) JOANA MACHADO - Olha Maria
6) HAMILTON DE HOLANDA - Cinema Paradiso
7) NINA SIMONE - Ne Me Quitte Pas
8) MEDESKI, MARTIN & WOOD - Hey Joe
9) NICK DRAKE - Parasite
10) GAL COSTA - Fotografia
11) ANTONY AND THE JOHNSONS - Perfect Day
12) EMÍLIO SANTIAGO & JOÃO NOGUEIRA - Amigo É Pra Essas Coisas
13) TAIGUARA - Modinha
14) LAURINDO DE ALMEIDA - Modinha
15) CHICO BUARQUE - Mulher, Vou Dizer Quanto Te Amo
16) GOTAN PROJECT - Una Musica Brutal
17) ELTON MEDEIROS - Lavo Minhas Mãos
18) CHARLES AZNAVOUR - C'est Fini
19) CAETANO VELOSO - Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim
20) CYRO MONTEIRO - Receita de mulher
21) GENE KELLY - Singin' In The Rain
22) GRANT LEE PHILLIPS - Boys Don't Cry
Dicionário Cravo Albin (Aldir Blanc)